NÃO AMO NADA QUE NÃO ME CAIBA NAS MÃOS
Não amo nada
que não me caiba nas mãos.
Mas, por outro lado, tenho mãos
grandes.
Então prefiro as coisas pequenas,
para poder amar um montão de coisas;
minha pedra deforme da sorte,
a corrente oxidada da porta,
o clips para a coceira interior,
o coração em forma de caracol do meu
namorado,
branco como uma pérola, limpo de sangue.
Todo mundo é a vítima em sua própria história:
Que problema há em guardar-te um
lugarzinho dentro de mim?
Por dentro todo mundo
não trata de ocultar algo,
de levar de contrabando alguma besta
cálida?
Sinto saudades da minha casa em meu próprio
quarto,
não voltarei a mostrar a cara até que
meus olhos recobrem vida.
Boa noite, janela.
Boa noite, parede.
Boa noite, irmãozinho.
Boa noite, noite. Perdão por estar
tão triste. Todo mundo é a vítima em sua
própria história.
CORPOS SOLITÁRIOS
Uma garça pousa. Se converte
em névoa. Um homem que me quer
amar sem amar-me está deitado
ao meu lado e me cita seu avô,
me diz: “um corpo não é lenha para
O fogo”, o que quer dizer
que se sente solitário e humano, o que quer dizer
que nunca viu um corpo retorcer-se & gritar
& volver-se uma fumaça espessa, a madeira desnuda
retorcida sem piedade. Me está chamando em uma espécie
de língua de senhas & não lhe vejo as mãos,
não sei o que quer dizer-me
Me pergunto se a névoa evita que as coisas
murchas peguem fogo como
evita que alguém veja. Me pergunto se ele sabe o
quão frios tenho os ossos, o quão desidratados
estão, & que se permaneço é porque é próprio
das coisas delicadas retorcerem-se. Um pássaro distinto
se lança desde o céu, devolvendo-me a forma ao meu corpo.
Eu rejeito os nomes com os quais me chama. Digo
que é uma nuvem, distraído como todas as nuvens,
porque me permite que me desvencilhe dele. Eu também
me converto em névoa & me dissipo.
TENTATIVAS TAUMATÚRGICAS QUEBRADIÇAS
Eu não sou milagreiro, não posso evitar
que o entardecer se dessangre na noite.
a escuridão só sabe desmoronar-se
para dentro.
As corujas do meu quarto já deixaram
de falar,
Vou aconchegar–me entre os ramos .
Quero apegar-me a algo que também
esteja apegado a algo. A apatia
me embala, uma mãe que não pedi.
Gastei toda a pele da cara,
derrubei os templos de minhas têmporas
& sigo sendo a exceção
profana de todas as regras.
A amargura é o mito que me restou
na boca &
que não lembro de tragar.
O gayzinho fica sozinho todos os
fins de semana.
A noite se abre sozinha, uma flor de
açafrão.
ÀS SEXTAS-FEIRAS ME PERMITO ESPERANÇA
Me estão encarando olhos de dragão
& minha casa não é nenhum santuário.
Construí caixas com
ossos de pássaros & contas de rosário.
Minha mãe se queixa
dos segredos que guardo ali dentro.
Nasci com a pele tatuada
em uma língua morta, infernal de
traduzir.
O menino no berço
com morcegos que pendem
chama sua mente enferma
o diabo em pessoa
Quanto tenho que abrir a boca
para nomear o que nunca vi?
Tenho a parte debaixo da língua
mofada
de podridão e de palavras;
minha mãe se queixa do apagão:
eu me queixo de ter nascido com ele.
Às sextas, me crescem asas curtidas
& quando o diabo me tira para dançar
faço de conta que é
todos os meninos que amei.
A ESPERANÇA É UMA CAIXA DE ABELHAS
Cruzo os dedos quebrados para pedir
um desejo:
que as ramas das árvores me
protejam dos dragões
e do mal. Besouros infestam a
poltrona.
Meu terapeuta diz que a palavra é
“trauma”.
Um pássaro caído se faz fumaça.
Eu revolvo o açúcar do meu chá, parado na
metade
do vendaval de folhas secas. Espero que
papai me esteja esperando onde termina
o bosque
mas eu sei que ele não existe mais.
Chovem os comprimidos que me receitaram.
PITANGA
Os pisos da memória são de vidro, o que significa
que o remédio não me está fazendo
efeito, o que significa
que estou outra vez no chão, o que significa
que estamos em julho, o que significa
que brotaram as pitangueiras, o que significa
que estão pintando de vermelho os arbustos,
o que significa que parecem de fogo, o que significa
que vou tratar de recolhê-las, o que significa
que ainda me atrai o perigo, o que significa
que poderia desejar-te outra vez, o que significa que você segue sendo um buraco negro, o que significa
que em você desapareço, o que significa
que vou te amar, o que significa
que sigo desejando desaparecer, o que significa
que o remédio não me está fazendo efeito,
o que significa
que sigo mal da cabeça, o que significa
que tinha razão, o que significa
que não tinha razão, o que significa
que não posso confiar em mim, o que significa
que não posso confiar em você, o que significa
que não posso confiar em nada, o que
significa
que necessito de remédios, o que significa
hospital, o que significa
outubro, o que significa
que já não deveria haver pitangas
isso não é de verdade
o remédio não me está fazendo efeito
os pisos da memória são de vidro
estou chegando ao fundo
ninguém me vai impedir
você não está.
RETRATO DO MANEQUIM COMO MEU PAI
Como homem, tens que fazer coisas
com o peito.
Como homem, guardas muitos
segredos. Tens
muitos segredos & tens que guardá-los
no peito. Deixe-me contar um. Quando
me veio
buscar a morte, olhei em seus olhos
verdes. Sim,
fiz o pior que pude, mas fui
valente. A última
luz que ví tinha a forma do rosto de sua
mãe. Quando
uma flor começa a abrir-se não está em seu
momento
de maior beleza. Requer graça &
lentidão, como
uma mulher que na praia arqueia o
pescoço. Inspirei
minha fumaça azul & jamais voltei a vê-la. Outro
dos segredos que guardo no peito. A flor enfim
dá as caras.
Traguei tanto que me matou tanto açúcar.
Tão distante estou da pessoa que mais amei.
poemas traduzidos da versão de Ezequiel Zaidenwerg
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