U20000
Perdoa o canto dos galos na aldeia, e a escuridão que não se esfumou ainda ao
cantar dos galos. Perdoa a pedra de moer primitiva e os edifícios cuja arquitetura
não avançou desde a época Qin. Inclusive sente uma certa nostalgia de tudo isso.
Perdoa a caneta sem tinta, o burro empacado. Perdoa a professora do secundário que castiga seus alunos, a mulher oca que os prende em uma sala escura.
Não perdoa sem embargo as tolices de seus congêneres, por mais que perdoe o muro tampado, o caminho cercado e as moscas que esvoaçam, por mais que perdoe essa pessoa a qual, em um quarto aquecido, lhe provoca arrepios.
Perdoa o voo em rasante dos corvos e os disparates dos flamingos, mas não perdoa as pedras ou as telhas que chovem do céu. Ainda assim não faz muito que aprendeu a controlar seu mau gênio.
Perdoa os soldados estendidos no solo, o juiz que bebe o leite, assim como
perdoas os arquivos, os rumores e sentenças sobre si; mas não perdoa os erros de
ortografia nos slogans e documentos, livros e manuais.
Perdoa a mulher que o traiu, a esposa que lhe disse adeus,-não há nenhum
registro escrito de sua dor. Não faz muito sabemos que tinha razões de sobra
para destruir seu único rádio valioso.
E sem embargo não o fez. Perdoa a fé no relâmpago, a fé na água. Quanta tristeza há no rio que serpenteia! Mas não perdoa um céu sem fé, pois para onde iria depois? E com quem iria encontrar-se?
Perdoa seu câncer, seu funeral miserável, e inclusive as nuvens que aparecem no dia do seu funeral, da mesma forma que perdoa uma comida em mau estado. Mas não perdoa o papel que outros queimam em seu nome. Vinte anos depois de sua morte, nos esforçamos para tratá-lo como uma pessoa.
II Sobre a solidão, é dizer sobre o desejo insatisfeito
13. A lua estimula a paixão, a cebola estimula a libido, as plantas medicinais estimulam o desejo pela doença, as chamas o desejo pela morte. Enquanto o desejo de comer não sei se nasce de mim ou dos parasitas em meu estômago. Enquanto os parasitas do meu estômago, ignoro se formam parte da minha consciência vital.
14. Frente ao desejo inclusive o imperador deve bater continência. Baixo o domínio do desejo até o tonto se mostrará inteligente. Ainda que não tenha nem ideia do que é o
que se esfuma ao vento, sabe que seu desejo tem as mãos vazias: assim atravessa o portal da solidão.
15. Ou para provar sua resistência abandona seu lar. Mas quando se cansa das privações e deseja recuperar sua fortuna descobre que os ratos já ergueram seu sistema no meio da casa: assim atravessa o portal da solidão.
16. Ou duvida cada dia mais de você mesmo e começa a castigar-se cegamente. Isso é exatamente como se plantasse com suas próprias mãos uma macieira esquelética mas te desmaia o golpe de uma maçã madura (a maçã te confundiu com Newton): assim atravessa o portal da solidão.
17. Ou utiliza uma voz falsa para rogar a um mundo falso. Um dos dois: ou você está equivocado, ou o mundo está equivocado. Te força a ficar com a cara vermelha e sem palavras, e é nesse momento que a sinceridade aparece: assim atravessa o portal da solidão.
18. Ou cria uma missão e trabalha nela como um trabalhador subterrâneo. Mas esta missão termina por ameaçar sua vida: assim atravessa o portal da solidão.
19. A solidão: labirinto pessoal. Dentro deste labirinto as plantas dão flores mas não o fazem para seduzir nem para vender (outro é seu objetivo). As plantas dão frutos mas não as vê darem gritos, não as vê dançarem (como se reconhece esse gozo interno?).
20. Cria um pássaro e converte o labirinto em jaula. Cria um cão e transforma o labirinto em uma casinha. No exato momento em que nega ser um pássaro está discutindo com um pássaro. No momento em que nega ser um cão ladra igual um cão.
21. Solitário aventureiro, ainda te doem as hemorroidas? Esta dor é para advertir-nos que o tempo não é em absoluto imaginário: que é o ritmo da corrente sanguínea, a aceleração do motor, o roçar entre esposa e esposo, a erosão da mente. Um aplauso longo e incessante encoraja o solitário a seguir seu deslizamento sobre o gelo perigoso.
22. Por perder um banquete dá de cara com uma briga. Por não se converter em santo se embriaga perdidamente em uma esquina. Canta, e os demais pensam que está uivando. Pede, e termina sacrificando sua própria pessoa. Uma pessoa que te perseguia termina caindo com você na mesma armadilha.
23. A solidão é volumosa.
24. O labirinto da solidão está cheio até arrebentar.
25. Você quer ou não quer ler este mapa? A pena é a primeira encruzilhada: um caminho leva até a canção, outro leva até o desconcerto. O desconcerto é a segunda encruzilhada: um caminho leva até o prazer, outro caminho leva até o vazio.
O vazio é a terceira encruzilhada: um caminho leva até a morte, outro caminho à iluminação. A iluminação é a quarta encruzilhada: um caminho leva à loucura, outro caminho leva ao silêncio.
Inverno
Este é o momento em que o pelo se torna branco, o momento em que a constelação de Orion passa perto de nós, as almas se desidratam e a neve cai forte sobre a oficina na entrada da fábrica, uma menina sentada recebe um convite e atravessa o salão de baile com suas luzes fantasmagóricas, um escritor amador deixa de escrever, e começa a preparar o alimento para os pardais do amanhecer.
A neve cai, a bosta de cavalo congela. O contador do povoado entra dançando na cidade.
Um gato se detém no meio do caminho, debate-se utilizando duas vozes.
Um quadro não compreendido durante a infância permanece incompreensível.
O táxi coberto de neve parece um urso polar. Seu motor está quebrado, a temperatura baixou até zero. Não suporto vê-lo render-se, por isso escrevo com um dedo em sua janela: “te amo”. Quando meu dedo desliza pelo vidro emite um ruidinho “chchch” de felicidade, como uma menina que, esperando um beijo, exala um brilho.
As doenças não entram na moda no inverno, as doenças têm seu próprio plano.
A torneira congelada economiza cada gota de água; o mar congelado nos salva da morte
Cada vez que me desperto no meio da noite, é justo o momento em que o fogo da estufa acaba de apagar-se. Saindo da cama caminho descalço até a estufa, brinco com os alicates
até que a chama ( que tinha ido sem se despedir) regressa ao mundo em fagulhas, aquecendo a respiração e a saliva da noite. Para o homem que agora está sonhando com uma manada de lobos, meu fogo pode ser sua salvação. Tenho vontade de lhe dizer: que mesmo no coração do inverno o fogo segue queimando; que se a manada de lobos teme o fogo, sem dúvida, é porque entre eles há alguém que no passado se queimou.
Herói que penetra meu quarto rompendo a porta: podeis levar o dinheiro que guardo embaixo da cama, podeis levar o fogo da minha estufa, mas não podeis levar meus olhos nem minhas pantufas- não podeis simular que sois eu vivendo neste mundo.
Um endereço sem nome e sobrenome me deixa um longo tempo em silêncio, um rosto foi esquecido, e sem embargo: outra vida, outra maneira de passar o tempo, tem criado o sangue e a carne de outra parte minha. Com o endereço nas mãos caminho pela rua de vento e neve. Por que pessoa serei rejeitado ou bem-vindo?
Restos de catarro: sinal de vida.
O frio subestimou nossa resistência.
O problema do luto
Uma formiga morre e ninguém a chora
Um pássaro morre e ninguém o chora, salvo que se trate de um ibis nipón
Um macaco morre, os macacos o choram
Um macaco morre, os homens lhe arrancam a tampa do crânio
Um tubarão morre, e outro tubarão segue cortando a água
Um tigre morre, um homem o chora, chorando por si mesmo
Um homem morre, há quem o chore e quem aplauda
Uma geração morre, e a próxima basicamente não a chora
Um país morre, e com frequência deixa apenas história controversas
Um país que não deixa histórias controversas não é um verdadeiro país
A não ser que se trate de um verdadeiro país, um país morre e ninguém o chora
Ninguém o chora, quer dizer que o vento sopra em vão
Quer dizer que corre o rio em vão, que em vão investe contra as rochas
Em vão brilham suas ondas, em vão produz espuma
O rio morre, não cabe aos homens chorá-lo
O vento morre, não cabe aos homens chorá-lo
O vento e o rio correm juntos até o oceano, um oceano vasto como em Zhuangzi
O oceano vasto morre, você também tem que morrer
o rei dragão morre, você também tem que morrer
a lua não se lamenta, porque na lua não há ninguém
As estrelas não se lamentam, não são de carne e osso.
C 00024
Há uma flor de lótus suspensa no céu. Merda de pássaro recebida pela terra. Um punho atravessa sua orelha. No boulevard ensolarado ele está a ponto de volver-se
transparente.
O grande fogo no céu já se apagou, quantas vidas há na poeira que cai à terra? Escuta alguém gritar um apelido da sua infância, e uma criança entra uma e outra vez em
seu coração.
Na cidadela de seu coração ao amanhecer há somente uma cadeira.
No sangrento campo de batalha do seu coração, alguém começou uma partida de
xadrez.
Experimentou nove vezes a rendição, dez vezes a resistência; três vezes foi
assassinado, quatro assassinou.
A lua brilha sobre o rio turvo: o orvalho limpa os espíritos românticos.
Em um carnaval, um fantasma pisa-lhe os calcanhares . A desgraça começou, um
homem de sobrancelhas grossas e olhos grandes o empurra fora do grupo.
Muitos anos mais tarde , acende seu primeiro fósforo. ”Assim são as coisas”, sussurra a
uma borboleta.
A ambos os lados do caminho varrido pelas borboletas, a ambos os lados do que antigamente
foi um caminho entre os campos, todas as casas se parecem a que abandonou
anos atrás, e os corvos estão caindo ao solo.
O velho mundo se derrubou aos seus pés, e ele sente que começou a volver-se transparente.
A tristeza sobe torrencialmente por suas têmporas, da mesma forma que sobem, por trás da casa, as estrelas da Ursa Maior… Um vendaval de tosse, uma vertigem, e de golpe esqueceu inteiro o livrinho da sua vida.
Tradução do espanhol da versão de Miguel Ángel Petrecca
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